Ana Cristina Satiro de Souza - Arquiteta gerontóloga,
Diretamente para o Portal do Envelhecimento
[http://www.portaldoenvelhecimento.net/acessibilidade/acessibilidade44.htm] em abril de 2010
A matéria “Arte resgata idosos do isolamento” recentemente publicada no Jornal O Estado de S. Paulo, provocou a escrita deste artigo que enfoca questões pertinentes à relação do homem com o ambiente construído a partir de uma pesquisa de campo .
Nossos espaços ainda são usualmente projetados sem levar em conta que 21 milhões de brasileiros tem mais de 60 anos de idade ou algum tipo de deficiência física - superando os contingentes de países europeus como França, Itália e Inglaterra. Desse modo, essa população experimenta dificuldades de acesso e mobilidade nas edificações que não contemplam os requisitos de acessibilidade – muitos dos quais previstos em normas e legislações de diversos âmbitos. Em face desse contexto, realizamos uma visita ao Museu Brasileiro de Escultura (Mube), em São Paulo, com um grupo de idosos a fim de verificar, na prática, as condições da ocupação do espaço por esse segmento populacional. Os resultados dessa pesquisa de campo são aqui relatados e discutidos sob uma perspectiva interdisciplinar, pautada por preocupações e princípios concernentes à arquitetura, à museologia e à gerontologia.
O texto está estruturado da seguinte forma. Apresentam-se inicialmente um breve apanhado histórico da arquitetura de museus e uma descrição da configuração arquitetônica do Mube. Em seguida são abordados alguns conceitos instrumentais acerca da relação homem/ambiente. Esses conceitos embasam a discussão empreendida na seção seguinte, que apresenta as nossas considerações sobre a interação dos idosos com o ambiente arquitetônico e cultural do Mube.
A arquitetura de museus: um breve panorama histórico
O museu é hoje compreendido, conforme definição do Conselho Internacional de Museus (ICOM), como “uma instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, difunde e expõe o patrimônio tangível e intangível da humanidade e de seu ambiente para fins de educação, estudo e recreação”.
Em suas origens mais remotas, porém, essa instituição tinha outro caráter. No início do século III a.C., o rei do Egito Ptolomeu I construiu em Alexandria o Mouseion – “templo das musas”, na acepção original do termo grego –, que consistia em um complexo de prédios consagrados exclusivamente às atividades de estudo e ensino em diversas áreas do saber e das artes.
Tal como reconhecido atualmente, o museu teve seu modelo esboçado no contexto do Renascimento, quando as artes se desvincularam das instituições religiosas. Isso levou a uma intensa produtividade artística e a uma valorização das obras de arte, ensejando-se então o interesse em preservar e expor as criações do homem.
O primeiro museu público de que se tem notícia foi o Museu Britânico, fundado em 1753 e aberto à visitação seis anos depois. Foi nessa época que a arquitetura passou a dar atenção mais específica ao edifício do museu. A monumentalidade será por longo período um fator inerente à instituição, como preconizou o arquiteto francês Jean-Nicolas Durand ao propor o “museu ideal”. Desenhado em bases geométricas e com rigor simétrico, esse modelo ideal tem uma organização espacial com longos eixos que convergem para o centro do edifício.
Essa concepção arquitetônica predominante só começa a ser reinterpretada no século XX, sobretudo a partir da década de 1930. É quando o arquiteto francês Auguste Perret propõe princípios para um museu moderno. Ele suprime o caráter de monumentalidade, mas mantém certa simetria e a organização espacial em torno de um eixo central; principalmente, propõe que um museu, além de ser um lugar para a conservação de artefatos, deve atender às condições de conforto e solidez, de modo a perdurar por gerações futuras. Paralelamente, Le Corbusier idealiza o “museu de crescimento ilimitado”, que apresenta traçado geométrico em espiral quadrada e permite ampliações sem limites, proporcionando assim soluções de flexibilidade e extensão para o edifício do museu.
Já na década de 1940, Mies van der Rohe abre caminhos para o surgimento de novas tipologias nos projetos dos museus. A partir de então a liberdade de criação artística chega à prancheta nos estudos arquitetônicos de museus, concebendo seu edifício como um espaço de fruição estética em si próprio, e não só em função dos objetos preservados.
A arquitetura do Mube
Projetado em 1986 pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o Museu Brasileiro de Escultura (Mube) foi inaugurado em 1995. Localiza-se no Jardim Europa, bairro da Zona Oeste da cidade de São Paulo cuja configuração urbanística se destaca por lotes residenciais com amplas massas verdes. O edifício confronta com a avenida Europa, que se estende desde o centro da cidade até o rio Pinheiros. Essa importante via pública está fortemente demarcada no projeto do Museu pela grande viga protendida de 60 metros de vão livre. Suspensa em sentido perpendicular à avenida, a viga faz o Mube se destacar na paisagem – traço característico dos marcos arquitetônicos projetados por Paulo Mendes da Rocha, que se inserem no entorno de maneira criativa e provocante.
A concepção arquitetural do Museu foge à ideia convencional de edificação elevada no terreno: seu volume está abaixo do nível da rua, a partir da qual se abre uma esplanada formada por uma praça alta e outra baixa. Os ambientes semienterrados compreendem grandes salões e apresentam continuidade por meio de rampas, escadas e luz natural. A área ocupada pelo Mube, de cerca de 6.900 m2, tem dimensões reduzidas para os fins de conservação de um acervo. Desse modo, sua principal vocação consiste em promover exposições, cursos e outros eventos voltados a fomentar o conhecimento e o desfrute da produção escultórica e de outras manifestações artísticas. Em conformidade com o modelo arquitetônico moderno, os espaços expositivos do Museu são amplos e livres, propiciando acomodar todo tipo de objeto de arte e explorar as mais diversas possibilidades expográficas.
Conceitos instrumentais: a relação homem/ambiente
A fim de explicitar os fatores instrumentais que compõem a análise da visita ao Mube apresentada a seguir, abordamos aqui alguns conceitos sobre as relações do ambiente construído com o homem e as suas particularidades diante do envelhecimento.
A imagem ambiental que se apresenta para o usuário de um determinado espaço resulta de um processo de interação entre esse observador e o ambiente. A realidade final do espaço pode variar entre os observadores, mas o processo de construção dessa imagem pode ser conceitualmente generalizado e decomposto em três elementos: identidade, estrutura e significado.
A identidade diz respeito a um objeto em separado e com características próprias, que levam o observador a reconhecê-lo ou não. A estrutura consiste na relação espacial que o objeto mantém com o observador, com os outros objetos e com o espaço como um todo. Por fim, esse objeto ou espaço deve ter algum significado para o observador, seja ele prático ou emocional. Assim, deve haver um vínculo de identificação e reconhecimento na relação dos usuários com o ambiente e os objetos que o compõem.
Para que esse processo de interação e reconhecimento se dê em toda a sua plenitude, o ambiente construído deve ser estruturado de modo a proporcionar condições adequadas a todos os seus usuários, o que implica considerar as especificidades daqueles para quem essa interação é inerentemente dificultada em razão da perda ou diminuição de certas capacidades fisiológicas. Nesse sentido, são determinantes os aspectos contemplados sob a noção de acessibilidade.
No contexto aqui em pauta, essa noção tem por princípio básico o reconhecimento da diversidade humana em suas variantes de sexo, idade e capacidade funcional. Haja vista a constatação de que parcela significativa da população é composta por pessoas que têm algum tipo de limitação física, falar em acessibilidade significa, de um modo geral, projetar espaços que proporcionem boas condições de mobilidade e orientação para os usuários que vivenciam tais limitações, notadamente os portadores de deficiência física, os idosos e as gestantes.
Desse modo, o ambiente construído deve ser concebido de maneira a atender às necessidades específicas desses segmentos populacionais, garantindo-lhes segurança, conforto e autonomia no uso dos espaços e dos seus equipamentos. Isso implica que os ambientes não apenas devem ser livres de quaisquer barreiras que limitem ou impeçam o acesso e a circulação desses usuários em particular, mas também devem lhes dar atenção diferenciada na forma de instalações e assentos de uso preferencial, sinalizações e informações de fácil entendimento, entre tantas outras medidas que possam favorecer sua inclusão social.
Num sentido mais amplo, tornar os espaços acessíveis a portadores de deficiência, idosos e gestantes significa promover sua inclusão social e garantir-lhes o pleno exercício da cidadania. Sob todos esses aspectos, o museu tem uma importante função social a cumprir como um espaço cultural, educativo e recreativo de interesse público.
O idoso e o museu: uma pesquisa de campo
Objetivo e metodologia
A pesquisa de campo aqui apresentada partiu do propósito geral de obter noções experimentais sobre a interação do idoso com o espaço construído do museu. Para tanto, realizou-se com um grupo de idosos uma visita ao Mube por ocasião de uma exposição de esculturas de Michelangelo. Essa visita foi objeto de um questionário semiestruturado com oito perguntas referentes à ocupação do espaço, considerando aspectos de acessibilidade, locomoção, conforto e receptividade (ver Quadro-síntese do questionário). A aplicação do questionário foi feita mediante conversa direta entre o pesquisador e os entrevistados após o percurso da exposição.
A visita transcorreu no dia 27 de novembro de 2008, durante o período da tarde. O grupo pesquisado foi composto por 14 pessoas com idade entre 60 e 80 anos, todos do sexo feminino. Somente um dos participantes do grupo utilizou cadeira de rodas durante a visita; os demais eram independentes e autônomos. Todos apresentaram bom desempenho cognitivo na compreensão do questionário e no relato de suas impressões.
Análise dos resultados
A concepção espacial de um museu deve criar um ambiente complexo e vibrante, que gere uma tensão artística e simbólica positiva e que se abra para várias possibilidades interpretativas nas suas relações com os visitantes. Mas também deve prever soluções ambientais que contemplem a diversidade de seus usuários, como ressaltamos na seção anterior. Em nossa visita ao Mube, todos os entrevistados demonstraram satisfação estética ao relatar a sensação de prazer visual com o espaço e as esculturas. Conforme a maioria dos depoimentos, porém, essa tensão estética positiva se converte numa tensão de insegurança física no momento de circular pelas rampas do museu. Essa insegurança se deve principalmente à inadequação do corrimão, que não favorece aos idosos a circulação vertical no espaço percorrido.
A progressiva perda de força muscular no processo do envelhecimento impõe cada vez mais a necessidade do uso de equipamentos que compensem essa limitação física. Tal é o caso do corrimão, um equipamento que é reconhecidamente essencial à locomoção do idoso, e que a bem da acessibilidade deve ser instalado de acordo com as especificações recomendadas na Norma 9.050/2004 da ABNT.
A iluminação do ambiente expositivo foi considerada inadequada pela grande maioria dos entrevistados. Ao se interpretar tal apreciação, deve-se levar em conta que esse ambiente recebe pouca luz natural por se tratar de um museu semi-enterrado, e também que no cenário expográfico a iluminação deve ser predominantemente focada nas esculturas. Não obstante esses fatores, cabe constatar que um ambiente com pouca iluminação impõe sensações visuais pouco confortáveis para o observador idoso.
Conceitualmente, a relação do homem com o espaço construído pode ser descrita como uma experiência sensorial pautada pela “pressão” dos estímulos no ambiente. Essa pressão deve ser mantida num nível de estímulos adequado: quando a pressão se encontra abaixo desse nível, predispõe ao tédio e à diminuição do aproveitamento; quando se encontra acima dele, o usuário pode se sentir desconcentrado e confuso. Ao criar um ambiente escuro, a iluminação da exposição exerceu um nível de pressão muito alto e acabou por provocar desconforto nos visitantes do nosso grupo. Muitos deles relataram incômodo com a escuridão e pressa de se deslocar para ambientes mais claros, em que pudessem ter maior segurança para a sua orientação espacial.
Essa alta pressão gerada pela iluminação sobre o idoso pode ser fisiologicamente explicada pelas perdas sensoriais da capacidade de visão que acompanham o envelhecimento. Além da diminuição da acuidade visual, há redução do ângulo da visão periférica, menor capacidade de visão noturna, sensibilidade ao ofuscamento, dificuldade na adaptação entre claro e escuro, menor noção de profundidade, menor discriminação de cores etc. Tudo isso justifica a necessidade de um projeto luminotécnico que contemple as especificidades de todos os expectadores e crie uma estrutura ambiental propícia a relações plenas de significado e identidade, sem excluir o usuário idoso.
Outra deficiência de visão na velhice consiste na dificuldade em ler letras pequenas, o que justifica a apreciação negativa sobre o material impresso apurada em nosso questionário. De fato, o folheto da exposição tinha uma letra com corpo muito reduzido para o leitor idoso. Outro aspecto negativo apontado pelos entrevistados quanto ao material impresso foi a ausência de informações que esperavam encontrar, tais como tempo de duração da visita à exposição, recomendações de horários, indicações sobre área de alimentação e valores cobrados.
Nos tempos contemporâneos, o museu cumpre as funções simbólicas e históricas da catedral como lugar de sociabilidade ao propiciar encontros e conversas em meio às obras de arte. Contudo, essa sociabilização só se dá plenamente na medida em que a estruturação ambiental predisponha às interações sociais, como pode ocorrer com a disponibilidade de bancos ou áreas de descanso no espaço expositivo. A maioria dos entrevistados afirmou não ter encontrado equipamentos para contemplação ou descanso nos espaços do Mube. A ausência desses elementos na estruturação do espaço tem uma dupla consequência: deixa-se de proporcionar ao visitante não só a comodidade de sentar-se para descansar ou para contemplar mais demoradamente os objetos de arte expostos, mas também a oportunidade de entabular relações com outros visitantes. Desse modo, enfraquece-se a dimensão do museu como lugar de estreitamento dos vínculos sociais e não se fortalecem os elos de identificação com o próprio museu.
Essas observações são reforçadas por outro resultado apurado em nosso questionário. Indagados sobre a possibilidade de que viessem a retornar ao Museu sozinhos ou com familiares/amigos, os entrevistados responderam em sua grande maioria que não voltariam sem o ensejo da visita em grupo. Isso sugere que a motivação para a ida ao museu residia em grande parte no próprio “grupo”, na visita realizada em conjunto, o que nos remete justamente à questão da criação de identidade simbólica na relação com o ambiente. Nesse caso, a identificação simbólica com o museu foi incapaz de motivar o desejo de reviver as emoções estéticas ali experimentadas, e mais ainda, de compartilhá-las com familiares e amigos.
Considerações finais
A pesquisa de campo aqui apresentada teve um caráter experimental. Seu principal objetivo foi o de investigar na realidade de uma experiência direta alguns dos elementos de uma problemática abrangente e complexa, que mobiliza preocupações pertinentes à arquitetura, à museologia e à gerontologia. Essas preocupações convergem para um esforço interdisciplinar no sentido de discutir e solucionar problemas que afetam a população idosa no que diz respeito às condições de acessibilidade no espaço construído – condições que foram resumidamente enfocadas na seção dedicada aos conceitos sobre a relação homem/ambiente.
Na medida em que a expectativa de vida dos brasileiros vem aumentando e o segmento das pessoas com mais de 60 anos de idade já representa 11,1% da população do país, a acessibilidade se torna uma questão social cada vez mais relevante, com particulares implicações no âmbito enfocado por este artigo: a arquitetura de museus. Dada a importância do papel cultural, educativo e recreativo dos museus na sociedade em que se inserem, cabe projetar e adaptar os espaços de suas edificações de tal modo que atendam às necessidades específicas de acesso e mobilidade dos idosos. Foi justamente nesse sentido que se orientou a iniciativa de nossa pesquisa de campo. Ao aferir e analisar a adequação do espaço e dos equipamentos de um museu ao visitante idoso, esperamos ter contribuído para subsidiar e ampliar as discussões sobre a temática da acessibilidade.
Bibliografia consultada
LEITE, Fabiana. Arte resgata idosos do isolamento. Jornal O Estado de S. Paulo, 21 de fevereiro de 2010.
GONÇALVES, Lisbeth R. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: Edusp, 2004.
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QUEIROZ, Rodrigo (org.). Arquitetura de museus: textos e projetos. São Paulo: FAU-USP, 2008.
RESOURCE: The Council for Museums, Archives and Libraries. Acessibilidade. Trad. de Maurício O. Santos e Patrícia Souza. São Paulo: Edusp, 2005.
SANTOS, Sónia Maria A. Acessibilidade em museus. Dissertação de mestrado, Porto, 2009 (mimeo).
Agradecimento especial à pedagoga, mestre em Gerontologia e
pesquisadora mentora do Portal do Envelhecimento Regina Pilar Galhego
Arantes pelo apoio na pesquisa de campo.