terça-feira, 27 de abril de 2010

Descobertas vividas por um novo olhar no museu





Ana Cristina Satiro de Souza - Arquiteta gerontóloga,

Diretamente para o Portal do Envelhecimento
[http://www.portaldoenvelhecimento.net/acessibilidade/acessibilidade44.htm] em abril de 2010



A matéria “Arte resgata idosos do isolamento” recentemente publicada no Jornal O Estado de S. Paulo, provocou a escrita deste artigo que enfoca questões pertinentes à relação do homem com o ambiente construído a partir de uma pesquisa de campo .

Nossos espaços ainda são usualmente projetados sem levar em conta que 21 milhões de brasileiros tem mais de 60 anos de idade ou algum tipo de deficiência física - superando os contingentes de países europeus como França, Itália e Inglaterra. Desse modo, essa população experimenta dificuldades de acesso e mobilidade nas edificações que não contemplam os requisitos de acessibilidade – muitos dos quais previstos em normas e legislações de diversos âmbitos. Em face desse contexto, realizamos uma visita ao Museu Brasileiro de Escultura (Mube), em São Paulo, com um grupo de idosos a fim de verificar, na prática, as condições da ocupação do espaço por esse segmento populacional. Os resultados dessa pesquisa de campo são aqui relatados e discutidos sob uma perspectiva interdisciplinar, pautada por preocupações e princípios concernentes à arquitetura, à museologia e à gerontologia.

O texto está estruturado da seguinte forma. Apresentam-se inicialmente um breve apanhado histórico da arquitetura de museus e uma descrição da configuração arquitetônica do Mube. Em seguida são abordados alguns conceitos instrumentais acerca da relação homem/ambiente. Esses conceitos embasam a discussão empreendida na seção seguinte, que apresenta as nossas considerações sobre a interação dos idosos com o ambiente arquitetônico e cultural do Mube.


A arquitetura de museus: um breve panorama histórico

O museu é hoje compreendido, conforme definição do Conselho Internacional de Museus (ICOM), como “uma instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, difunde e expõe o patrimônio tangível e intangível da humanidade e de seu ambiente para fins de educação, estudo e recreação”.

Em suas origens mais remotas, porém, essa instituição tinha outro caráter. No início do século III a.C., o rei do Egito Ptolomeu I construiu em Alexandria o Mouseion – “templo das musas”, na acepção original do termo grego –, que consistia em um complexo de prédios consagrados exclusivamente às atividades de estudo e ensino em diversas áreas do saber e das artes.

Tal como reconhecido atualmente, o museu teve seu modelo esboçado no contexto do Renascimento, quando as artes se desvincularam das instituições religiosas. Isso levou a uma intensa produtividade artística e a uma valorização das obras de arte, ensejando-se então o interesse em preservar e expor as criações do homem.

O primeiro museu público de que se tem notícia foi o Museu Britânico, fundado em 1753 e aberto à visitação seis anos depois. Foi nessa época que a arquitetura passou a dar atenção mais específica ao edifício do museu. A monumentalidade será por longo período um fator inerente à instituição, como preconizou o arquiteto francês Jean-Nicolas Durand ao propor o “museu ideal”. Desenhado em bases geométricas e com rigor simétrico, esse modelo ideal tem uma organização espacial com longos eixos que convergem para o centro do edifício.

Essa concepção arquitetônica predominante só começa a ser reinterpretada no século XX, sobretudo a partir da década de 1930. É quando o arquiteto francês Auguste Perret propõe princípios para um museu moderno. Ele suprime o caráter de monumentalidade, mas mantém certa simetria e a organização espacial em torno de um eixo central; principalmente, propõe que um museu, além de ser um lugar para a conservação de artefatos, deve atender às condições de conforto e solidez, de modo a perdurar por gerações futuras. Paralelamente, Le Corbusier idealiza o “museu de crescimento ilimitado”, que apresenta traçado geométrico em espiral quadrada e permite ampliações sem limites, proporcionando assim soluções de flexibilidade e extensão para o edifício do museu.

Já na década de 1940, Mies van der Rohe abre caminhos para o surgimento de novas tipologias nos projetos dos museus. A partir de então a liberdade de criação artística chega à prancheta nos estudos arquitetônicos de museus, concebendo seu edifício como um espaço de fruição estética em si próprio, e não só em função dos objetos preservados.

A arquitetura do Mube

Projetado em 1986 pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o Museu Brasileiro de Escultura (Mube) foi inaugurado em 1995. Localiza-se no Jardim Europa, bairro da Zona Oeste da cidade de São Paulo cuja configuração urbanística se destaca por lotes residenciais com amplas massas verdes. O edifício confronta com a avenida Europa, que se estende desde o centro da cidade até o rio Pinheiros. Essa importante via pública está fortemente demarcada no projeto do Museu pela grande viga protendida de 60 metros de vão livre. Suspensa em sentido perpendicular à avenida, a viga faz o Mube se destacar na paisagem – traço característico dos marcos arquitetônicos projetados por Paulo Mendes da Rocha, que se inserem no entorno de maneira criativa e provocante.

A concepção arquitetural do Museu foge à ideia convencional de edificação elevada no terreno: seu volume está abaixo do nível da rua, a partir da qual se abre uma esplanada formada por uma praça alta e outra baixa. Os ambientes semienterrados compreendem grandes salões e apresentam continuidade por meio de rampas, escadas e luz natural. A área ocupada pelo Mube, de cerca de 6.900 m2, tem dimensões reduzidas para os fins de conservação de um acervo. Desse modo, sua principal vocação consiste em promover exposições, cursos e outros eventos voltados a fomentar o conhecimento e o desfrute da produção escultórica e de outras manifestações artísticas. Em conformidade com o modelo arquitetônico moderno, os espaços expositivos do Museu são amplos e livres, propiciando acomodar todo tipo de objeto de arte e explorar as mais diversas possibilidades expográficas.

Conceitos instrumentais: a relação homem/ambiente

A fim de explicitar os fatores instrumentais que compõem a análise da visita ao Mube apresentada a seguir, abordamos aqui alguns conceitos sobre as relações do ambiente construído com o homem e as suas particularidades diante do envelhecimento.

A imagem ambiental que se apresenta para o usuário de um determinado espaço resulta de um processo de interação entre esse observador e o ambiente. A realidade final do espaço pode variar entre os observadores, mas o processo de construção dessa imagem pode ser conceitualmente generalizado e decomposto em três elementos: identidade, estrutura e significado.

A identidade diz respeito a um objeto em separado e com características próprias, que levam o observador a reconhecê-lo ou não. A estrutura consiste na relação espacial que o objeto mantém com o observador, com os outros objetos e com o espaço como um todo. Por fim, esse objeto ou espaço deve ter algum significado para o observador, seja ele prático ou emocional. Assim, deve haver um vínculo de identificação e reconhecimento na relação dos usuários com o ambiente e os objetos que o compõem.

Para que esse processo de interação e reconhecimento se dê em toda a sua plenitude, o ambiente construído deve ser estruturado de modo a proporcionar condições adequadas a todos os seus usuários, o que implica considerar as especificidades daqueles para quem essa interação é inerentemente dificultada em razão da perda ou diminuição de certas capacidades fisiológicas. Nesse sentido, são determinantes os aspectos contemplados sob a noção de acessibilidade.

No contexto aqui em pauta, essa noção tem por princípio básico o reconhecimento da diversidade humana em suas variantes de sexo, idade e capacidade funcional. Haja vista a constatação de que parcela significativa da população é composta por pessoas que têm algum tipo de limitação física, falar em acessibilidade significa, de um modo geral, projetar espaços que proporcionem boas condições de mobilidade e orientação para os usuários que vivenciam tais limitações, notadamente os portadores de deficiência física, os idosos e as gestantes.

Desse modo, o ambiente construído deve ser concebido de maneira a atender às necessidades específicas desses segmentos populacionais, garantindo-lhes segurança, conforto e autonomia no uso dos espaços e dos seus equipamentos. Isso implica que os ambientes não apenas devem ser livres de quaisquer barreiras que limitem ou impeçam o acesso e a circulação desses usuários em particular, mas também devem lhes dar atenção diferenciada na forma de instalações e assentos de uso preferencial, sinalizações e informações de fácil entendimento, entre tantas outras medidas que possam favorecer sua inclusão social.

Num sentido mais amplo, tornar os espaços acessíveis a portadores de deficiência, idosos e gestantes significa promover sua inclusão social e garantir-lhes o pleno exercício da cidadania. Sob todos esses aspectos, o museu tem uma importante função social a cumprir como um espaço cultural, educativo e recreativo de interesse público.


O idoso e o museu: uma pesquisa de campo


Objetivo e metodologia

A pesquisa de campo aqui apresentada partiu do propósito geral de obter noções experimentais sobre a interação do idoso com o espaço construído do museu. Para tanto, realizou-se com um grupo de idosos uma visita ao Mube por ocasião de uma exposição de esculturas de Michelangelo. Essa visita foi objeto de um questionário semiestruturado com oito perguntas referentes à ocupação do espaço, considerando aspectos de acessibilidade, locomoção, conforto e receptividade (ver Quadro-síntese do questionário). A aplicação do questionário foi feita mediante conversa direta entre o pesquisador e os entrevistados após o percurso da exposição.

A visita transcorreu no dia 27 de novembro de 2008, durante o período da tarde. O grupo pesquisado foi composto por 14 pessoas com idade entre 60 e 80 anos, todos do sexo feminino. Somente um dos participantes do grupo utilizou cadeira de rodas durante a visita; os demais eram independentes e autônomos. Todos apresentaram bom desempenho cognitivo na compreensão do questionário e no relato de suas impressões.

Análise dos resultados

A concepção espacial de um museu deve criar um ambiente complexo e vibrante, que gere uma tensão artística e simbólica positiva e que se abra para várias possibilidades interpretativas nas suas relações com os visitantes. Mas também deve prever soluções ambientais que contemplem a diversidade de seus usuários, como ressaltamos na seção anterior. Em nossa visita ao Mube, todos os entrevistados demonstraram satisfação estética ao relatar a sensação de prazer visual com o espaço e as esculturas. Conforme a maioria dos depoimentos, porém, essa tensão estética positiva se converte numa tensão de insegurança física no momento de circular pelas rampas do museu. Essa insegurança se deve principalmente à inadequação do corrimão, que não favorece aos idosos a circulação vertical no espaço percorrido.

A progressiva perda de força muscular no processo do envelhecimento impõe cada vez mais a necessidade do uso de equipamentos que compensem essa limitação física. Tal é o caso do corrimão, um equipamento que é reconhecidamente essencial à locomoção do idoso, e que a bem da acessibilidade deve ser instalado de acordo com as especificações recomendadas na Norma 9.050/2004 da ABNT.

A iluminação do ambiente expositivo foi considerada inadequada pela grande maioria dos entrevistados. Ao se interpretar tal apreciação, deve-se levar em conta que esse ambiente recebe pouca luz natural por se tratar de um museu semi-enterrado, e também que no cenário expográfico a iluminação deve ser predominantemente focada nas esculturas. Não obstante esses fatores, cabe constatar que um ambiente com pouca iluminação impõe sensações visuais pouco confortáveis para o observador idoso.

Conceitualmente, a relação do homem com o espaço construído pode ser descrita como uma experiência sensorial pautada pela “pressão” dos estímulos no ambiente. Essa pressão deve ser mantida num nível de estímulos adequado: quando a pressão se encontra abaixo desse nível, predispõe ao tédio e à diminuição do aproveitamento; quando se encontra acima dele, o usuário pode se sentir desconcentrado e confuso. Ao criar um ambiente escuro, a iluminação da exposição exerceu um nível de pressão muito alto e acabou por provocar desconforto nos visitantes do nosso grupo. Muitos deles relataram incômodo com a escuridão e pressa de se deslocar para ambientes mais claros, em que pudessem ter maior segurança para a sua orientação espacial.

Essa alta pressão gerada pela iluminação sobre o idoso pode ser fisiologicamente explicada pelas perdas sensoriais da capacidade de visão que acompanham o envelhecimento. Além da diminuição da acuidade visual, há redução do ângulo da visão periférica, menor capacidade de visão noturna, sensibilidade ao ofuscamento, dificuldade na adaptação entre claro e escuro, menor noção de profundidade, menor discriminação de cores etc. Tudo isso justifica a necessidade de um projeto luminotécnico que contemple as especificidades de todos os expectadores e crie uma estrutura ambiental propícia a relações plenas de significado e identidade, sem excluir o usuário idoso.

Outra deficiência de visão na velhice consiste na dificuldade em ler letras pequenas, o que justifica a apreciação negativa sobre o material impresso apurada em nosso questionário. De fato, o folheto da exposição tinha uma letra com corpo muito reduzido para o leitor idoso. Outro aspecto negativo apontado pelos entrevistados quanto ao material impresso foi a ausência de informações que esperavam encontrar, tais como tempo de duração da visita à exposição, recomendações de horários, indicações sobre área de alimentação e valores cobrados.

Nos tempos contemporâneos, o museu cumpre as funções simbólicas e históricas da catedral como lugar de sociabilidade ao propiciar encontros e conversas em meio às obras de arte. Contudo, essa sociabilização só se dá plenamente na medida em que a estruturação ambiental predisponha às interações sociais, como pode ocorrer com a disponibilidade de bancos ou áreas de descanso no espaço expositivo. A maioria dos entrevistados afirmou não ter encontrado equipamentos para contemplação ou descanso nos espaços do Mube. A ausência desses elementos na estruturação do espaço tem uma dupla consequência: deixa-se de proporcionar ao visitante não só a comodidade de sentar-se para descansar ou para contemplar mais demoradamente os objetos de arte expostos, mas também a oportunidade de entabular relações com outros visitantes. Desse modo, enfraquece-se a dimensão do museu como lugar de estreitamento dos vínculos sociais e não se fortalecem os elos de identificação com o próprio museu.

Essas observações são reforçadas por outro resultado apurado em nosso questionário. Indagados sobre a possibilidade de que viessem a retornar ao Museu sozinhos ou com familiares/amigos, os entrevistados responderam em sua grande maioria que não voltariam sem o ensejo da visita em grupo. Isso sugere que a motivação para a ida ao museu residia em grande parte no próprio “grupo”, na visita realizada em conjunto, o que nos remete justamente à questão da criação de identidade simbólica na relação com o ambiente. Nesse caso, a identificação simbólica com o museu foi incapaz de motivar o desejo de reviver as emoções estéticas ali experimentadas, e mais ainda, de compartilhá-las com familiares e amigos.

Considerações finais

A pesquisa de campo aqui apresentada teve um caráter experimental. Seu principal objetivo foi o de investigar na realidade de uma experiência direta alguns dos elementos de uma problemática abrangente e complexa, que mobiliza preocupações pertinentes à arquitetura, à museologia e à gerontologia. Essas preocupações convergem para um esforço interdisciplinar no sentido de discutir e solucionar problemas que afetam a população idosa no que diz respeito às condições de acessibilidade no espaço construído – condições que foram resumidamente enfocadas na seção dedicada aos conceitos sobre a relação homem/ambiente.

Na medida em que a expectativa de vida dos brasileiros vem aumentando e o segmento das pessoas com mais de 60 anos de idade já representa 11,1% da população do país, a acessibilidade se torna uma questão social cada vez mais relevante, com particulares implicações no âmbito enfocado por este artigo: a arquitetura de museus. Dada a importância do papel cultural, educativo e recreativo dos museus na sociedade em que se inserem, cabe projetar e adaptar os espaços de suas edificações de tal modo que atendam às necessidades específicas de acesso e mobilidade dos idosos. Foi justamente nesse sentido que se orientou a iniciativa de nossa pesquisa de campo. Ao aferir e analisar a adequação do espaço e dos equipamentos de um museu ao visitante idoso, esperamos ter contribuído para subsidiar e ampliar as discussões sobre a temática da acessibilidade.


Bibliografia consultada

LEITE, Fabiana. Arte resgata idosos do isolamento. Jornal O Estado de S. Paulo, 21 de fevereiro de 2010.

GONÇALVES, Lisbeth R. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: Edusp, 2004.

HALL, Edward T. A dimensão oculta. Trad. de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MONTANER, Josep M. Museus para o século XXI. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2003.

QUEIROZ, Rodrigo (org.). Arquitetura de museus: textos e projetos. São Paulo: FAU-USP, 2008.

RESOURCE: The Council for Museums, Archives and Libraries. Acessibilidade. Trad. de Maurício O. Santos e Patrícia Souza. São Paulo: Edusp, 2005.

SANTOS, Sónia Maria A. Acessibilidade em museus. Dissertação de mestrado, Porto, 2009 (mimeo).



Agradecimento especial à pedagoga, mestre em Gerontologia e
pesquisadora mentora do Portal do Envelhecimento Regina Pilar Galhego
Arantes pelo apoio na pesquisa de campo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

A arte relegada à tutela

Escrito por:
Elizabet Dias de Sá
Psicóloga e Educadora
Belo Horizonte, dezembro de 2006.


Certo dia, estive em São Paulo, onde participava de um evento e quis aproveitar o horário do almoço para conhecer a Pinacoteca do Estado, pois só contava com aquele momento para esta atividade. Fui com duas colegas de trabalho que estavam no mesmo evento. Imaginei que poderia chegar, entrar e sair como qualquer pessoa. Mas, a nossa visita se converteu em uma experiência malograda e constrangedora.

Na recepção, descobrimos que somente elas pagariam o ingresso, pois a entrada é gratuita para pessoas com deficiência. Mal começamos a percorrer o espaço e percebi que se tratava de uma exposição de arte liberada para os olhos e não para as mãos. Ao ouvir a descrição de minhas colegas, toquei em uma das esculturas de bronze e fui prontamente barrada pelo funcionário, que se comportou de modo impecável como fiel guardião do tesouro. Ele argumentou que era necessário agendar uma visita orientada conforme prevê o programa educativo para “públicos especiais” e eu disse que minhas colegas estavam em condições de acompanhar-me. Afinal, elas trabalham na área da deficiência visual além de sermos adultas e idôneas. Esclareci, também, que viajaria no final daquela tarde. Ele se mostrou solícito e foi consultar os seus superiores. Entre as idas e vindas de um e outro funcionário para solucionar o problema, eu tocava em uma escultura de bronze e logo vinha o sentinela para me impedir. Então, eu disse a ele para me mandar prender.

Ele voltou com algumas pessoas e todas elas me convidavam a integrar um grupo de alunos cegos com visita programada àquela tarde. Eu explicava que o horário não era compatível com o meu compromisso e elas insistiam com argumentos e explicações acerca do agendamento para “públicos especiais”. Alegavam que eram normas estabelecidas, que teriam prazer em me apresentar o programa, que eu iria gostar muito. Enquanto isto, o tempo passava e o impasse continuava. Argumentei que minhas colegas poderiam me auxiliar no deslocamento e na descrição das obras e tudo que eu queria era apenas apreciar, à minha maneira, aquela exposição. A responsável pelo programa explicou que isto não era possível porque somente ela tem o contexto do projeto e disponibilidade para orientar visitas previamente agendadas. Meus argumentos eram rebatidos com a mesma ladainha: as normas, a especificidade do programa e a insistência no convite para aguardar o grupo de estudantes cegos. A esta altura o mal estar estava instalado e todos mostravam desconforto diante da situação.

Perdi a paciência ao ouvir o mesmo argumento repetidas vezes. Perdi também a racionalidade e deixei rolar as lágrimas de uma emoção impregnada de múltiplos sentimentos. Para aquele grupo, eu precisava compreender que as normas não permitiam que uma pessoa cega tocasse em uma obra de arte a não ser em uma visita monitorada por eles. Para mim, o silêncio perplexo diante da insensibilidade travestida de cortesia e complacência. Ouvia repetidas explicações acerca das normas estabelecidas. O toque só era consentido em certas circunstâncias e por meio de um ritual programado para este fim. Assim, eu deveria contentar-me com a concessão de aguardar o horário do grupo programado para aquela tarde, integrar-me a ele e conhecer a pinacoteca. Não me autorizavam a fazer a visita individualmente porque há um ritual previsto e orientado. Tudo é uma questão de preservação das obras que estariam em risco se as pessoas não cumprissem as normas do museu. Em suma, fui tratada como se fosse uma predadora em potencial ou uma criança que não tem autonomia nem idoneidade para se responsabilizar por seus atos. Nesta instituição, vale mais a rigidez das normas, o protagonismo dos programas do que a livre apreciação da arte por qualquer pessoa.

Este episódio me lembra as palavras de Oscar Wilde: “Os que encontram significações belas nas coisas belas são os cultos, Para esses há esperança. Eleitos são aqueles para quem as coisas belas apenas significam Beleza”



Fonte: Banco de Escola
http://www.bancodeescola.com/aarte.htm